“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

Em-cena: “Orlando, ma biographie politique”, de Paul Preciado

A cena mais inusitada mostra um livro sendo operado em uma mesa de cirurgia! O livro é Orlando, o mais cervantiano dos romances. Essa é a cena-síntese de uma das fitas mais interessantes que vi nos últimos tempos, realizada pelu filósofe trans Paul Preciado, em profundo diálogo com a escritora Virginia Woolf no romance Orlando. Preciado um dia fora mulher e hoje se vive como homem trans – mais correto seria dizer que assumiu a inter-invenção de ser uma pessoa trans. Vivendo sua vida como transição, elu revisita o romance de Woolf, o mais famoso caso de transicionalidade da literatura ocidental, e, propõe uma revisão do gênero como imagem e narrativa na maravilhosa fita Orlando, ma biographie politique (França, 2023).

O princípio narrativo do filme é um só: várias pessoas trans são convocades para encenarem a personagem fictícia Orlando no enredo de Virginia Woolf. Todes ês personagens que aparecem são pessoas de inúmeras locais que hoje se apresentam ae espectadore afirmando seu nome próprio (são váries atores e atrizes) e que irão viver (também) Orlando. Os episódios da vida de Orlando viram episódios dessas pessoas que re-encenam Orlando como parte do processo de transição. Ao mesmo tempo em que elus encenam a personagem no palco-fílmico, compartilham suas próprias histórias e inserem uma camada extra no personagem canônico. Uma das minhas sequências favoritas é a de Rubens Rizza, pessoa trans que conta que conseguiu sair de grande ansiedade após iniciar a transição cirúrgica, e, finalmente, encontrar o amor com outra pessoa trans. Elu encena justamente o episódio do romance no qual Orlando, ainda “homem”, sofre sua decepção amorosa com Sasha. A atriz atua aguardando Sanha, tal como Orlando, num palco que é apresenta uma lona ao fundo, pintada com imagens invernais de árvores e neve, num estúdio de gravação, de maneira que a ficção cinematográfica é um palco teatral que, por sua vez, é a encenação do gênero. A sobreposição do fracasso amoroso heterossexual de Orlando com Sasha, com a realidade do amor transsexual da pessoa real, curta-circuita o enredo do romance e amplia os enredos da vida cotidiana.

A expressão acima “era homem” tem função retórica passageira: a tese do filme de Preciado é que Orlando sempre esteve em trânsito, e que Virginia usou de subterfúgios para fazê-la emergir como Orlando-mulher. O grande recurso literário fora mostrar a transição ocorrendo na periferia do mundo. A fita realiza outra leitura enfatizando, por meio de Kori Angelis Brown, moça trans preta, como a transição de Orlando ocorrera quando ele era embaixador na Turquia/Oriente, no século XVI, onde as fronteiras afastariam as certezas da Inglaterra de Virginia do início do século XX e permitiria a emergência de sensualidades e erotismos dissidentes. No romance, a transição de Orlando ocorria quando elu acordava mulher após um longo sono, o que é retomado pela fita para expor um novo ponto-de-vista, no qual a transição não é definida como um momento de virada, mas que a vida é composta de viradas contínuas de uma diferença que se reconhece nesse movimento. Não se trata mais de refúgio exótico oriental no qual emergem ês gêneres que não têm lugar no “reino da Inglaterra”, metáfora de todos os mundos políticos estáveis, mas de aceitar que o cotidiano mundano é o lugar em que a transição ocorre ao nosso redor.

Por esses e outros recursos, o filme mistura o nível das performances e da ficcionalidade criando pontos-de-vista em movimento: na medida em que ê protagoniste de Orlando é uma personagem fictícia que vive uma possibilidade ficcional (virar mulher), as diversas pessoas reais que vivem a transexualidade atual/real em Orlando, ma biographie politique fazem da personagem algo real e não mais um faz-de-conta. O filme tem a atitude de reivindicar as trajetórias trans não contadas, aquelas que existiam ainda antes da publicação do romance de Virginia e as que vieram depois dela, que, como o personagem do livro, foram tomadas como fictícias ou excepcionais, mas que na verdade estiveram sempre ao nosso redor, sendo que eram obrigades a se invisibilizar e silenciar para sobreviver em corpos indesejados.

Em vários momentos da fita, materiais de arquivos mostram personagens históricas, tais como Silvya Rivera, mulher trans hispânica ativista do movimento LGBTQIA+ estadunidense e que ficou famosa pela fala no Dia de Libertação de Christopher Street, de 1973, em New York, quando acusou os movimentos de apagarem o papel histórico das drags e mulheres transgêneros. Poderíamos acrescentar aí os casos brasileiros, como o de Roberto Close e tantos mais. A fita apresenta trajetórias conhecidas e desconhecidas e afirma que as pessoas trans estiveram e estão em fluxo. Nesse sentido, é uma pequena obra-prima visual-verbal que revisita uma narrativa fundamental da literatura ocidental de uma escritora bissexual, ela própria machucada por não poder viver sua sexualidade e vítima de violência psiquiátrica. O filme retorna a Orlando como uma carta para agradecer a visibilidade da transexualidade que Virginia fizera como literatura, na qual Preciado encontra um modelo que é estético/poético para expor sua trajetória e a de todes os Orlandos que já existiram e ês Orlandes que existem hoje. Orlando, ma biographie politique apresenta um curto-circuito: na medida em que a ficção de Woolf é transformada em realidade, a realidade das pessoas todas são convertidas em ficções.

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Ês Orlandes do filme reencenam os episódios do personagem do livro como se fossem deles, mas sempre realizando adaptações com as diversas situações de sua trajetória própria: a ansiedade quanto a atribuição de gênero, a insatisfação com o corpo ou com a auto-imagem do corpo, a indefinição frente aos outros, a exclusão familiar e a alegria de poder viver a transição e reconhecer seus iguais, a invenção de seus noves corpes. Em um dos momentos mais divertidos do filme, váries orlandes estão na sala de espera de um consultório psiquiátrico para avaliar seus casos de transição e elus começam a cantar contra Freud e Lacan e sua psicologia heteronormativa que patologiza desejos dissidentes. A mensagem de Preciado é clara: para viver e acertar melhor a memória da exclusão que esmaga igualmente hetero/homo-normativos e pessoas trans, devemos quebrar a psicologia europeia e mandar Freud e Lacan se fuderem.

O filme termina por afirmar que, por mil motivos mil, Virginia Woolf estivera enganada: a transexualidade tem sido uma existência histórica que demanda rever as experiências não conhecidas, as imagens não vistas e as narrativas não contadas disponíveis no mundo. Orlando-livro pode ter sido um livro único na história da literatura, mas Orlando-personagem nunca fora um caso único. O filme faz ver, por meio de montagens e desmontagens da própria encenação fílmica, que a sexualidade é uma ficção política em fluxo ligada a certa poética de corpe, da memória e do desejo. Acaba funcionando como uma tese socio-antropológica, bem dito, algo na ordem do Manifesto Contrassexual, famoso livro de Paul Preciado.

Nesse sentido, a fita é divertida e difícil, desafiando certezas cotidianas sobre gênero e sexualidade, e oferecendo suas próprias imagens-discurso como uma poética. Ao retirar as pessoas trans da periferia, o debate desafia a compreensão do gênero, procurando superar o limite dos binarismos sobre masculino/feminino, hetero/homo, ficção/realidade. Na fita, cada um desses termos tornam-se espelhos entre si, mas, eu ainda diria, a noção do gênero-sexualidade como “ficção política” cria um outro par que tende a ser não-binário:  em Orlando, ma biographie politique, o par/espelho central seria ficção/política!

Para isso, precisamos superar as narrativas fundadoras: em uma cena magnífica, a um só tempo metafórica e literal, o romance de Virginia está aberto em uma mesa de cirurgia, com suas páginas à mostra das pessoas trans que irão operá-lo. Como mediques da cultura, elus localizam as figuras e ilustrações inseridas na edição de Orlando, e as substituem por fotografias e pinturas de outras pessoas trans, de dissidentes do gênero e da sexualidade que passam a compor o cânone histórico-cultural com as imagens des esquecides. Surge um novo Orlando-texto que é o próprio Orlando-filme. A escolha por inserir imagens num texto escrito é sintomático de sujeites que entendem que para existir agora demandam existir como imagens também no presente/passado. Orlando, ma biographie politique é repleta de cenas que mostram pessoas trans que encenam a si mesmas, mostra cenários sendo montados e desmontados, personagens tendo suas resistências pintadas-inscritas como re(existências) na imagem fílmica. Maravilhosamente, a fita lembra os recursos de re-dramatização de Derek Jarman ou Pier Paolo Pasolini, mas superando a estes, pensa/mostra a existência (trans)gênero como uma poética de cena política na qual a visualidade trans torna-se visibilidade e vice-versa.

No fundo, a fita se sustenta na metáfora do gênero como encenação, um tropo visual frequente que marcou as narrativas de cineastas LGBTQIA+, bastando lembrar de Tudo sobre minha mãe (1999), Má educação (2004) e Pele que habito (2007), do Pedro Almodóvar. Mas em Orlando, ma biographie politique, os gêneros são vários em-cenas e a fita  deixa de ser metáfora para ser imagem paradoxalmente literal: a cena política e sue sujeites são existires de pessoas trans que ficcionalizam a si mesme. Essa contravisualidade formidável é trans, feito por pessoas que destituem a representação imposta, e, resistem, também, pelas suas apresentações-presenças instáveis. Elus são trans de si mesmes. O filme, enfim, é uma em-cena política…

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