“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

Luchino Visconti

A Sicília o é em rovine: Il Gattopardo (1963), de Luchino Visconti

Jamais conheci a Sicília, mas fui aos filmes de Luchino Visconti. Tudo que sei sobre ela está relacionado a alguns itens dos quais cito mapas, alguns artigos e eventualmente uns romances do Vittorini, Verga e filmes de um Pietro Germi ou Visconti. Acrescentaria figuras num livro de arte ou arquitetura ou de história e os guias de viagem. De fato quem me formou sobre a Sicília foi Visconti. Embora não tenha sido num filme dele que vi a ilha pela primeira vez, foram suas as imagens que impregnaram, na minha mente, desde a fita La Terra Trema, de 1949, a ideia da Sicília que tenho desde então: ali, tudo o é em ruína. Isso retorna em Il Gattopardo, de 1963, que tive o prazer de rever.

Entenda-se que com isso não faço um diagnóstico da Sicília real atual ou mesmo de sua história. Pelo contrário, trata-se de uma ilha-imagem que surge mediada pelos sonhos do cinema, constituída pela sensibilidade de Visconti. A impressão é que se em Vittorini tudo ali é exatamente igual como se tornou um dia, e por isso a Sicília parece velha e arcaica, semi-arruinada; em Visconti, tudo ali já surgiu como ruína, pois a condição siciliana parece ter sido nascer velha, pobre e gasta. A estonteante paisagem recortada por Visconti em Il Gattopardo faz das localidades sicilianas um acervo de imagens nos quais as ruas antigas, as casas gastas, a pobreza aparente, o ambiente ensolarado, o uso constante dos amarelos, as locações sempre no verão seco, a luz sempre forte dos exteriores, os interiores de casas e palácios sempre iluminados, enfim, tudo se combina para criar um mundo ideal do sempre-mesmo, um “mesmo” também sempre-velho e ancestral, como se a única casa do Tempo fosse sempre as ruínas da casa.

O príncipe Don Fabrizio Salina é o melancólico sábio que antevê que o tempo é cíclico e não uma linha de progresso. O Risorgimento, mais conhecido como a unificação italiana ocorrida nos anos 1860, parece-lhe como um raio de esperança natimorto. Salina secretamente se entusiasma com os garibaldini, mas como bom aristocrata sabe que não pode arriscar perder seu espaço e por isso investe em Tancredi, seu sobrinho amado, aquele que tem, em parte, a vida que Salina gostaria de ter tido. O príncipe é uma personalidade solar e poderosa, vivida lindamente por Burt Lancaster. Ele esmaga toda a sua família com sua autoridade, uma vez que todos o amam, admiram e seguem sem questionar. Exceto Tancredi, um sensual e ambicioso personagem vivido por Alain Delon, que surge pró-Garibaldi e termina ingressando no exército unificado que passaria a perseguir os renascentes das forças populares garibaldinas. Salina se identifica com Tancredi no seu ímpeto, mas meio que se decepciona quando este ingressa no exército. 

O baile mitológico

Isso porque se Salina tem uma consciência cósmica dos movimentos da história, ele era também simpático à potência popular que terminaria, se bem sucedida, por destruí-lo. Uma vez que as forças conservadoras se ergueriam e voltariam a se afirmar, Salina sabia que a potência popular estava fadada ao fracasso. Isso significa que a força justa da mudança seria vencida e o próprio Salina poupado (e o personagem trabalha por isso). Numa relação ambígua, Salina se permitia ter uma simpatia romântica pela revolução. Quando Tancredi a abandona, também se confirma o vaticínio de Salina: tudo deve mudar para que tudo permaneça o mesmo. Tal diagnóstico, em alguma medida um exercício cabal da historia magistra vitae, é uma sentença que interpreta a própria trajetória da Itália, aplicando-se tanto aos anos 1960 como a hoje, se considerarmos a perspectiva de Visconti. 

Tancredi é, portanto, um traidor e um reacionário. Ele é absolutamente sedutor, como sua amada Angélica, a personagem sensual vivida por Claudia Cardinale. É o italiano descendente da aristocracia que ganhará lugar na modernização da história da Itália unificada, seducente e ambíguo, conservador e impetuoso. O filme e Salina (o qual, em alguma medida é Visconti) amam-no e o veem com desconfiança: homem conquistador, representante dos novos tempos, é curiosamente, o que reafirma o controle das elites sobre os destinos da história. 

A ideia do Risorgimento como uma traição do norte contra as forças populares já aparecia em outro filme, Senso, a magnífica obra de Visconti de 1954. Naquela época o caso envolveu diratamente a censura do estado italiano. Visconti naquele filme estava inclusive mais efusivo do que em Il GattopardoSenso dividiu a crítica italiana, retomou os debates sobre o neorrealismo – do qual Visconti fora um dos precursores e representante – nas páginas de jornais e revistas italianas, como Bianco e Nero e Cinema Nuovo, e, causou comoção como interpretação histórica sobre a fundação da Itália no século XIX. Era um caso de debate sobre história nacional no espaço público acionado pelo cinema como uma espécie de memória comunitária. 

O astrólogo do passado

A interpretação de Visconti da traição em Senso foi retomada em Il Gattopardo. Isso se deve sem dúvida a identificação do filme com a figura de Don Fabrizio. O Príncipe é o representante da casta de nobres sicilianos, que entende que a Sicília jamais fora dona de si própria porque os sicilianos se entendem, acima de tudo, por sua vaidade e não por sua história. Salina brinca dizendo que os sicilianos são como deuses que gostam de ser senhores da própria inércia. Afirma que ambiente e siciliano se criam mutuamente como intensidade, dureza e ruína – para nós brasileiros equivale a uma descrição da figura do sertanejo ou do nordestino, por exemplo – que se afirma nas dificuldades materiais da terra e na beleza de sua paisagem. Don Fabrizio é um velho mago: o filme o mostra em seu gabinete com os pássaros empalhados, que eventualmente caça, e seus livros, indicando sua grande sapienza. Ele conhece e se antecipa à política, mas é também mostrado cercado de telescópios, como um personagem que perscruta os astros, ou seja, investiga destinos e passados, o que demonstra seu aspecto de melancólico desiludido pela história. 

Os palácios de Salina são decorados de forma exuberante, e, o que no romance homônimo de Lampedusa – do qual o filme é uma adaptação – é apenas uma indicação, por exemplo, de decoração rococó, a cenografia do filme transformou numa forma visual de suntuosidade que encarna a alma aristocrata da família Salina. Em especial, o filme é repleto de estátuas e bustos, indicação decorativa do gosto familiar e da nobreza, e, acima de tudo, indicação do tempo petrificado almejado como estabilizado pelos sicilianos como deuses de seu sempre-agora-arruinado. O filme se tornou conhecido pelo baile no qual Burt Lancaster dança com Claudia Cardinalle numa cena belíssima. Falemos, porém, do proscênio da sequência: na primeira cena do baile, logo após a entrada dos personagens no palácio vemos algo: criados seguram os candelabros (!) com as velas enquanto bustos emolduram as paredes, escadas e corredores. A câmera os mostra no fundo e começa a se mover da direita para a esquerda. No movimento do quadro, surgem as costas de um busto, ocupando, por segundos, a atenção do espectador, disposta exatamente entre o “olho” da câmera (e do espectador) e o fundo no qual os personagens, em dupla, avançam pelo corredor mostrado, de maneira que o filme cria a ilusão de uma perspectiva da própria escultura. Somos, como espectadores, seus olhos e ela os olha conosco – ou por nós. À direita, do lado da porta que dá acesso ao baile, outro busto, a clássica figura de Adriano, recebe aos convidados. O passado encarnado nas esculturas está sempre observando os vivos, sempre localizado entre eles.

A linda cena final. Típica do cinema moderno.

O final do filme é icônico: Salina sai do baile cansado e caminha sozinho pelas ruas do paese rumo a sua casa. O refinamento de suas vestes e sua riqueza, em impecável fraque preto e sciarpa branca contrasta com as ruas secas, sem pavimento, as casas ressequidas que parecem já ter nascido daquela forma. A figura melancólica se move entre ruínas como sempre-agora. Ele se ajoelha quando um padre passa no raiar do dia para uma extrema unção. Ainda ajoelhado olha para um céu que não vemos e diz o famoso “aforisma” que desde então permeia a mente dos cinéfilos:

O stella, o fedele stella,

Quando ti deciderai a darmi

Un appuntamento meno effimero,

Lontano da tutto,

Nella tua regione di perenne certezza?

(Ó estrela, fiel estrela,

Quando te decidirás a dar-me

Um encontro menos efêmero,

Longe de tudo,

No teu lugar de certeza perpétua?)

O mais intrigante da cena é que a câmera mostra apenas Don Fabrizio, não há corte para mostrar a imagem do céu ou da estrela. Presumimos que seja a Estrela-da-Manhã, mas nada é mostrado. O lugar perfeito no qual ele gostaria de se refugiar ficará distante no céu e a invisibilidade da estrela é o sonho que sequer pode ser sonhado. O príncipe se ergue e entra numa rua escura, também ela arruinada, um gato se move no chão. Salina, como bom melancólico, se recolhe ao passado-ruína do qual ele próprio se origina, desaparecendo no Tempo, misturado com as pedras, o pó e o cal. 

Il Gattopardo, lembremos, não apresenta a Sicilia no inverno, porque homogeneiza a paisagem-tempo que incorpora como estate-sfuggente, um filme no qual o verão está em eterno crepúsculo, mas nunca termina.