“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

Cinema Italiano

A Sicília o é em rovine: Il Gattopardo (1963), de Luchino Visconti

Jamais conheci a Sicília, mas fui aos filmes de Luchino Visconti. Tudo que sei sobre ela está relacionado a alguns itens dos quais cito mapas, alguns artigos e eventualmente uns romances do Vittorini, Verga e filmes de um Pietro Germi ou Visconti. Acrescentaria figuras num livro de arte ou arquitetura ou de história e os guias de viagem. De fato quem me formou sobre a Sicília foi Visconti. Embora não tenha sido num filme dele que vi a ilha pela primeira vez, foram suas as imagens que impregnaram, na minha mente, desde a fita La Terra Trema, de 1949, a ideia da Sicília que tenho desde então: ali, tudo o é em ruína. Isso retorna em Il Gattopardo, de 1963, que tive o prazer de rever.

Entenda-se que com isso não faço um diagnóstico da Sicília real atual ou mesmo de sua história. Pelo contrário, trata-se de uma ilha-imagem que surge mediada pelos sonhos do cinema, constituída pela sensibilidade de Visconti. A impressão é que se em Vittorini tudo ali é exatamente igual como se tornou um dia, e por isso a Sicília parece velha e arcaica, semi-arruinada; em Visconti, tudo ali já surgiu como ruína, pois a condição siciliana parece ter sido nascer velha, pobre e gasta. A estonteante paisagem recortada por Visconti em Il Gattopardo faz das localidades sicilianas um acervo de imagens nos quais as ruas antigas, as casas gastas, a pobreza aparente, o ambiente ensolarado, o uso constante dos amarelos, as locações sempre no verão seco, a luz sempre forte dos exteriores, os interiores de casas e palácios sempre iluminados, enfim, tudo se combina para criar um mundo ideal do sempre-mesmo, um “mesmo” também sempre-velho e ancestral, como se a única casa do Tempo fosse sempre as ruínas da casa.

O príncipe Don Fabrizio Salina é o melancólico sábio que antevê que o tempo é cíclico e não uma linha de progresso. O Risorgimento, mais conhecido como a unificação italiana ocorrida nos anos 1860, parece-lhe como um raio de esperança natimorto. Salina secretamente se entusiasma com os garibaldini, mas como bom aristocrata sabe que não pode arriscar perder seu espaço e por isso investe em Tancredi, seu sobrinho amado, aquele que tem, em parte, a vida que Salina gostaria de ter tido. O príncipe é uma personalidade solar e poderosa, vivida lindamente por Burt Lancaster. Ele esmaga toda a sua família com sua autoridade, uma vez que todos o amam, admiram e seguem sem questionar. Exceto Tancredi, um sensual e ambicioso personagem vivido por Alain Delon, que surge pró-Garibaldi e termina ingressando no exército unificado que passaria a perseguir os renascentes das forças populares garibaldinas. Salina se identifica com Tancredi no seu ímpeto, mas meio que se decepciona quando este ingressa no exército. 

O baile mitológico

Isso porque se Salina tem uma consciência cósmica dos movimentos da história, ele era também simpático à potência popular que terminaria, se bem sucedida, por destruí-lo. Uma vez que as forças conservadoras se ergueriam e voltariam a se afirmar, Salina sabia que a potência popular estava fadada ao fracasso. Isso significa que a força justa da mudança seria vencida e o próprio Salina poupado (e o personagem trabalha por isso). Numa relação ambígua, Salina se permitia ter uma simpatia romântica pela revolução. Quando Tancredi a abandona, também se confirma o vaticínio de Salina: tudo deve mudar para que tudo permaneça o mesmo. Tal diagnóstico, em alguma medida um exercício cabal da historia magistra vitae, é uma sentença que interpreta a própria trajetória da Itália, aplicando-se tanto aos anos 1960 como a hoje, se considerarmos a perspectiva de Visconti. 

Tancredi é, portanto, um traidor e um reacionário. Ele é absolutamente sedutor, como sua amada Angélica, a personagem sensual vivida por Claudia Cardinale. É o italiano descendente da aristocracia que ganhará lugar na modernização da história da Itália unificada, seducente e ambíguo, conservador e impetuoso. O filme e Salina (o qual, em alguma medida é Visconti) amam-no e o veem com desconfiança: homem conquistador, representante dos novos tempos, é curiosamente, o que reafirma o controle das elites sobre os destinos da história. 

A ideia do Risorgimento como uma traição do norte contra as forças populares já aparecia em outro filme, Senso, a magnífica obra de Visconti de 1954. Naquela época o caso envolveu diratamente a censura do estado italiano. Visconti naquele filme estava inclusive mais efusivo do que em Il GattopardoSenso dividiu a crítica italiana, retomou os debates sobre o neorrealismo – do qual Visconti fora um dos precursores e representante – nas páginas de jornais e revistas italianas, como Bianco e Nero e Cinema Nuovo, e, causou comoção como interpretação histórica sobre a fundação da Itália no século XIX. Era um caso de debate sobre história nacional no espaço público acionado pelo cinema como uma espécie de memória comunitária. 

O astrólogo do passado

A interpretação de Visconti da traição em Senso foi retomada em Il Gattopardo. Isso se deve sem dúvida a identificação do filme com a figura de Don Fabrizio. O Príncipe é o representante da casta de nobres sicilianos, que entende que a Sicília jamais fora dona de si própria porque os sicilianos se entendem, acima de tudo, por sua vaidade e não por sua história. Salina brinca dizendo que os sicilianos são como deuses que gostam de ser senhores da própria inércia. Afirma que ambiente e siciliano se criam mutuamente como intensidade, dureza e ruína – para nós brasileiros equivale a uma descrição da figura do sertanejo ou do nordestino, por exemplo – que se afirma nas dificuldades materiais da terra e na beleza de sua paisagem. Don Fabrizio é um velho mago: o filme o mostra em seu gabinete com os pássaros empalhados, que eventualmente caça, e seus livros, indicando sua grande sapienza. Ele conhece e se antecipa à política, mas é também mostrado cercado de telescópios, como um personagem que perscruta os astros, ou seja, investiga destinos e passados, o que demonstra seu aspecto de melancólico desiludido pela história. 

Os palácios de Salina são decorados de forma exuberante, e, o que no romance homônimo de Lampedusa – do qual o filme é uma adaptação – é apenas uma indicação, por exemplo, de decoração rococó, a cenografia do filme transformou numa forma visual de suntuosidade que encarna a alma aristocrata da família Salina. Em especial, o filme é repleto de estátuas e bustos, indicação decorativa do gosto familiar e da nobreza, e, acima de tudo, indicação do tempo petrificado almejado como estabilizado pelos sicilianos como deuses de seu sempre-agora-arruinado. O filme se tornou conhecido pelo baile no qual Burt Lancaster dança com Claudia Cardinalle numa cena belíssima. Falemos, porém, do proscênio da sequência: na primeira cena do baile, logo após a entrada dos personagens no palácio vemos algo: criados seguram os candelabros (!) com as velas enquanto bustos emolduram as paredes, escadas e corredores. A câmera os mostra no fundo e começa a se mover da direita para a esquerda. No movimento do quadro, surgem as costas de um busto, ocupando, por segundos, a atenção do espectador, disposta exatamente entre o “olho” da câmera (e do espectador) e o fundo no qual os personagens, em dupla, avançam pelo corredor mostrado, de maneira que o filme cria a ilusão de uma perspectiva da própria escultura. Somos, como espectadores, seus olhos e ela os olha conosco – ou por nós. À direita, do lado da porta que dá acesso ao baile, outro busto, a clássica figura de Adriano, recebe aos convidados. O passado encarnado nas esculturas está sempre observando os vivos, sempre localizado entre eles.

A linda cena final. Típica do cinema moderno.

O final do filme é icônico: Salina sai do baile cansado e caminha sozinho pelas ruas do paese rumo a sua casa. O refinamento de suas vestes e sua riqueza, em impecável fraque preto e sciarpa branca contrasta com as ruas secas, sem pavimento, as casas ressequidas que parecem já ter nascido daquela forma. A figura melancólica se move entre ruínas como sempre-agora. Ele se ajoelha quando um padre passa no raiar do dia para uma extrema unção. Ainda ajoelhado olha para um céu que não vemos e diz o famoso “aforisma” que desde então permeia a mente dos cinéfilos:

O stella, o fedele stella,

Quando ti deciderai a darmi

Un appuntamento meno effimero,

Lontano da tutto,

Nella tua regione di perenne certezza?

(Ó estrela, fiel estrela,

Quando te decidirás a dar-me

Um encontro menos efêmero,

Longe de tudo,

No teu lugar de certeza perpétua?)

O mais intrigante da cena é que a câmera mostra apenas Don Fabrizio, não há corte para mostrar a imagem do céu ou da estrela. Presumimos que seja a Estrela-da-Manhã, mas nada é mostrado. O lugar perfeito no qual ele gostaria de se refugiar ficará distante no céu e a invisibilidade da estrela é o sonho que sequer pode ser sonhado. O príncipe se ergue e entra numa rua escura, também ela arruinada, um gato se move no chão. Salina, como bom melancólico, se recolhe ao passado-ruína do qual ele próprio se origina, desaparecendo no Tempo, misturado com as pedras, o pó e o cal. 

Il Gattopardo, lembremos, não apresenta a Sicilia no inverno, porque homogeneiza a paisagem-tempo que incorpora como estate-sfuggente, um filme no qual o verão está em eterno crepúsculo, mas nunca termina.


A infância e a hostilidade do mundo em “Sciuscià”

Não é a primeira vez que um filme de Vittorio De Sica me emociona. No Brasil, a fita fora chamada de Vítimas da Tormenta, nome quase afortunato que perde, porém, de vista, o intraduzível Sciuscià (1946) –  poderia ser “bando” mas continua sendo inexato pelo contexto específico – denominação atribuída aos meninos que trabalham na rua, em especial, para os soldados americanos, ou faziam pequenos furtos no pós-guerra italiano. O enredo se passa diretamente no final da Segunda Grande Guerra, e Pasquale e Giuseppe são os pobres engraxates que se envolvem numa trama de tráfico de produtos americanos e vão parar em um reformatório. O filme começa com os meninos andando a cavalo, no qual toda a potencialidade e espontaneidade da infância se fazem com um animal de estimação que permite também viver a liberdade lúdica. Em círculo que se fecha, como veremos, a fita começa com um cavalo e encerra com outro: no inicio os meninos cavalgam, no final, o cavalo branco deles segue calmo e solitários na noite deixando seus cavaleiros abandonados na floresta.

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O reformatório é uma velha casa cinematográfica da tormenta infantil e juvenil, um topos se se preferir, daqueles lugares visuais-narrativos recorrentes. Já aparecia em Zéro di Conduite, o famoso filme de Jean Vigo que encantou plateias na década de 1930. Novamente o topos volta à baila e encanta também os franceses com mais uma rebelião no ponto culminante da narrativa de Sciuscià. Também ali vai haver uma rebelião de meninos , mas no cenário do pós-guerra, desta vez eles perdem a inocência enquanto são castigados pelo que fazem e pelo que não fazem enquanto são também abandonados pelos pais e parentes. Eles se rebelam e fogem, mas sua liberdade não é a mesma da briga contra uma instituição opressora, como em Vigo, pois mesmo na fuga a realidade exterior não é tão melhor. A tormenta do título em português é a guerra, mas a ideia não é exata: a hostilidade do mundo contra as crianças é um misto de desestrutura social e apoio institucional (família e estado). Sciuscià não é somente sobre o efeito da guerra, uma vez que mostra crianças sendo destruídas e reagindo como crianças, tentando criar soluções quando enfrentam problemas. Castigando ou punindo umas às outras quando se machucam, suas reações querem ser genuinamente infantis e perdidas. No mundo hostil em que vivem, suas atitudes imprudentes as condenam.

Se o campo no qual os amigos correm com o cavalo é marcadamente o lugar da liberdade, a cidade é o lugar da opressão. A câmera está sempre baixa e quase nunca mostra o céu de Roma. Jamais operando no alto das paredes, a infância está cercada por muros de prédios, nas ruas, e no Reformatório, ela se encontra completamente isolada. O pátio do reformatório se torna um lugar de expressão do poder controlador: cinco meninos por cela, comida ruim, e o pátio um quadrado imenso com um afresco da Crucificação exigindo o sacrifício e a adoração dos meninos. As crianças são presas pela Lei e controladas pela Igreja, com a colaboração dos padres que consolam e controlam os meninos com o superego religioso. Mas Deus parece ausente dessa história ao não fazer nada contra a tormenta.

No pátio do reformutório haverá uma sessão de cinema, na qual por instantes os meninos somem na alegria lúdica. Levado pela Igreja, um cinejornal fala dia avanço aliado no Pacífico, portanto localizamos temporalmente a fita entre 25 de abril de 1944 em setembro de 1945. Logo em seguida é exibido uma comédia, mas não vemos suas cenas, ao contrário do cinejornal. O filme sempre se quiz uma janela para o mundo e o cinejornal é apresentado ao espectador deixando claro o mundo em guerra e hostil. Mas a comédia que diverte os rapazes aparece pouco. Logo, estranhamente a janela para a liberdade e o lúdico é apenas um momento de respiração para o espectador. Vemos os rostos dos meninos se divertindo, mas jamais i que eles veem. De Sica quer deixar claro que não há janela e por isso foca nossa atenção na tentativa de fuga.

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Celeiro de pequenos homens vis, o reformatório não tem janelas senão para o pátio fechado, o que significa fechar o horizonte de visão e ação dos meninos. Apenas um dos funcionários é sensível aos jovens e quando o mais frágil deles morre pisoteado numa tentativa de rebelião, também este homem afirma que não pode dar conta do que está acontecendo. Estas crianças não terão futuro. O circulo dramático do filme é fechado e amarrado ao redor de cenas chaves. Ainda antes de serem presos os meninos visitam uma cartoamante. Eles pedem para ela ver o futuro deles, o que ela se recusa a fazer dizendo que eles são apenas meninos. O mais jovem, Giuseppe, pergunta porquê, afinal se eram meninos isso significaria que eles não teriam futuro? Essa pergunta, aparentemente retórica, realiza-se plenamente como resposta negativa quando tanto o menino frágil que dividia cela com Pasquale morre como quando, na fuga, o próprio Giuseppe morre, em uma briga com seu melhor amigo.

Os rapazes estão sempre sendo oprimidos numa infância de pobres com ruas e prédios a esmagá-la. No julgamento de Pasquale e Giuseppe, no Palácio de Justiça de Roma, seus amigos crianças , as outras sciuscie adentram o gigantesco e pesado prédio neoclássico. No ingresso principal do jardim, há um grupo escultório da Justiça entronizada em uma alta escadaria na qual a estátua encimada está num por grande pedestal. No filme as crianças entram no palácio e encontram a estátua da figura e perguntam quem seria a figura.  Eles acabam concordando que não sabem de quem se trata: as crianças desvalidas não conhecem a Justiça. A câmera apresenta as crianças apequenadas no palácio, tomando o cenário de baixo para cima, com as  paredes do palácio subindo até o alto e os meninos e meninas como pequenas e baixas figuras cercadas. Elas olham para uma estátua além, a câmera corta rapidamente para a Justiça, para logo em seguida mostrar apenas as crianças ladeadas pelas gigantescas estátuas abaixo que compõem o conjunto escultório. Elas seguem à sala onde os meninos serão condenadas.

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A cena trágica da morte da Giuseppe típico fim das narrativas neorrealistas é o clímax moral de um “sem sentido” do acontecimento. A briga entre os rapazes começa por pura mágoa, quando um deles, Pasquale, se sente traído e roubado por Giuseppe. Eles brigam quando simbolicamente o mais velho intercepta a fuga de Giuseppe com Riccardo, o rapaz mais velho desesperado por estar preso. Os dois fugitivos fogem a cavalo e seguem  sobre uma ponte, Pasquale chega e os ameaça com uma barra de ferro. Riccardo foge, Giuseppe desce e Pasquale, que terminara na solitária prisão porque pensava que Giuseppe estava levando uma surra de cinturão, começa a bater no amigo com um cinto. Este se desequilibra e cai da ponte, morrendo na queda para desespero de seu amigo. A surra de cinto é uma imagem infantil, de uma certa infância que normalizava a agressão. Imagem de punição, foi com ela como ato que Pasquale agrediu o amigo sem jamais imaginar que ele morreria. Tudo ocorreu como um acidente sem sentido.

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Ao final da cena o cavalo vai embora. Claramente simbólico, como um pet/imagem da liberdade lúdica juvenil e viril, o cavalo branco fora uma ideia do roteirista Cesare Zavattini, o qual conferiu uma certa direção ao enredo. Logo que os meninos conseguem comprá-lo, eles passeiam pelas ruas de Roma se exibindo na frente das outras crianças com quem trabalhavam. Estas celebram os meninos sem inveja aparente, com um companherismo idealista e pueril. A linda cena fica na memória pois os meninos terminam juntos ao pé de uma ponte enquanto o cavalo anda sozinho como a metáfora da infância destruída. Dizem que o neorrealismo tem algumas figuras chaves como os escombros e a criança. Basta pensar em Roma cidade aberta, Alemanha Ano Zero e Ladrões de Bicicleta entre outros. De Sica retoma a infância e a mete nas ruas de Roma, criando símbolos frágeis e imprevisíveis que conferem lirismo ao mesmo tempo que se tornam indispensáveis ao filme. Ele evita os escombros da cidade depois da guerra, mas mostra a infância arruinada.

Lindo filme que gruda nos detalhes da memória…

 

 


O mundo de Loro, dePaolo Sorrentino

Loro é o nome dos dois últimos filmes de Paolo Sorretino, respectivamente Loro 1e Loro 2, e ambos são sobre Silvio Berlusconi. O enfrentamento biográfico de um homem vivo é como lutar com o mito. Se uma vida, de fato, só se torna realmente contável depois que o vivente se foi e Berlusconi segue vivíssimo, Loro 1e 2estão fadados a existirem, por hora, na sombra do homem vivo, o qual ainda vai acrescentar novos episódios a sua vida, sendo ele próprio um mito politico. Em entrevistas, o diretor tem feito esforços para distanciar o filme do homem político e encontrar o que o próprio diretor tem chamado de o “homem” por meio de “uma história de amor”. Tais tentativas só revelam a impossibilidade de ver os Lorolonge do complexo de imagens que já existem sobre Berlusconi.

Contraditoriamente são como filmes políticos (para o público) e não-políticos (para o diretor) que os Lorosfalham construindo para si um estranho lugar no atual momento cultural italiano, em que o horizonte político do país não se abre frente a recente eleição fracassada e o retorno de Berlusconi ao centro do cenário nacional. Os Loroestão fadados ao fracasso, uma vez que já nasceram como obras políticas, monumentalizam o seu personagem, e serão alegorizadas pelos italianos de hoje.

Loro 2.2

Isso porque os Loro são filmes sobre dois mitos. O primeiro é, evidentemente, Berlusconi. Ficou evidente o enamoramento de Sorretino (em nível de roteiro e direção) e do ator Toni Servillo pelo Cavaliere. Ambos apresentam um homem que tem a autoimagem de um vitorioso exilado, aquele que compreendendo a Itália como poucos, a governou no passado e pode governa-la no futuro. Berlusconi, o personagem, é de fato um personagem cuja vitalidade e firmeza, bem como o humor, se destacam de todos ao seu redor. A humanização do personagem, apaixonado por sua infeliz e distante esposa, insatisfeito porque não se sente bem em seu exílio no ensolarado sul italiano, vivido de maneira canastrona, mas ao mesmo tempo afetiva e simpática por Servillo, confere a Berlusconi uma proximidade com a audiência que talvez jamais tenha experimentado o real ex-presidente. E como sabemos que uma imagem acrescenta uma nova realidade à pessoa, talvez isso signifique alguma coisa, quando Berlusconi – esta semana ele readquiriu seus direitos políticos. O Berlusconi de Servillo é afável, inteligente, bem humorado, rico, desejado, autoritário e inventivo, um sonho fálico de potência masculina. É o que “todo” homem deseja ser, por ser o que um homem conquistador já é. Nada parece fora do lugar, exceto, talvez, seu amor por Verônica, a coisa mais forçada, porém, mais verdadeira do roteiro graças ao trabalho magistral de Servillo e da atriz Erica Ricci como a esposa magoada.

O outro mito político é uma quimera e por isso mais interessante, mas construído de forma desigual e fragmentada: o povo italiano. Se acompanharmos os comentários e entrevistas de Sorretino fica evidente também que “os italianos” são “o” personagem do qual Berlusconi é um espelho e um ideal. A cena inicial de Sergio Morra (Ricardo Scamarcio) transando com a prostituta que tem tatuado o rosto de Berlusconi sobre a lombar é de uma ironia atroz. A imagem tem tantas camadas que demonstram como Sorrentino não perdeu sua capacidade de construir tensões: trata-se de “foder” Berlusconi? Ou de “foder” a posse (a mulher!) de Berlusconi? Ou ainda de desejar ser um Berlusconi? Em um dado momento, Morra diz a sua esposa que deseja se aproximar “deles”, “daqueles que importam” e fica claro que o nome italiano dos filmes de Sorretino combina os dois sentidos do pronome loro, quais sejam, “eles/deles”: eles (loro) são aqueles que importam porque a Itália é deles (loro).

Mas quem são “eles”? Os donos do poder, aquilo que Berlusconi representa como mito do italiano conquistador, o qual tem acesso a um universo de belas mulheres objetificadas, um mundo pleno da música, intensidade e drogas. Trata-se uma “política do sensível”, num sentido bem mais vulgar, na qual tráfico, êxtase químico, dinheiro, prostituição, propriedade, sedução, frustração, impotência, humilhação e medo se espelham uns nos outros.

O poder é apresentado em chave moralista, mas no nível da direção de cena (que adota uma estética de videoclipe na qual a velocidade da câmera é diminuída e se sobrepõem cenas oníricas das festas com cores pesadas e efeitos visuais alucinógenos) a narração do filme se enamora do mundo que apresenta. Aquele mundo de vitalidade é decadência e explosão vital mostrada como exuberância visual.Toda a primeira parte de Loro 1, na qual Berlusconi ainda não aparece, é sobre quais os métodos necessários para falar com “eles” e ingressar no seu clube. Nessa parte toda, correspondente aos esforços de Sergio Morra, a energia vital é mostrada até a exaustão dos personagens. O próprio Berlusconi só aparecerá neste tipo de imagem-videoclipe em uma única cena de Loro 2, quando decepcionado com a sucessão dos acontecimentos, decide visitar a festa de Morra dando-lhe um lampejo de esperança vã de ascensão social.

A coisa mais incômoda em tudo isso é o olhar falocrático que conduz os filmes. É fálico e misógino, uma vez que a mulher é objetificada como corpo/imagem. Mais do que mostrar como elas são usadas, ou como elas se oferecem para os homens e constroem estranhas fidelidades com aqueles que as dominam, elas se oferecem às câmeras e uma narração fílmica que se delicia aos seus corpos expostos. A decisão de se demorar sobre o corpo feminino, de certificar o espectador reiteradamente da beleza das mulheres, quase sempre semi-nuas, por vezes se depilando nas piscinas, seduzindo aos homens, faz do olho da câmera um comparsa dos homens-personagens. O filme, na denúncia da mulher usada/abusada pelo homem, é ele próprio, em muitos momentos, misógino.

Loro 1, em especial, é uma obra na qual a misoginia se apresenta como aliada primeira do patriarcado. O poder italiano é masculino, o domínio político é masculino e os Lorosão filmes sobre mitos masculinos de decadência, sobre homens ridículos e patéticos que vampirizam as mulheres e aos italianos – o que em alguma medida significa que feminiliza a mãe-Itália. O patético dos homens é expresso, eles não são poupados, mas o fato de que se naturalize a posição da mulher como propriedade masculina, no enredo e no olhar, faz com que, de fato, o patetismo do homem seja normalizado.

Em apenas duas cenas isso é relativizado, ambas em Loro 2: na primeira, Berlusconi em uma festa repleta de ladieslascivas, tenta seduzir a única mulher que não o deseja, a única, portanto, que tinha valor. A garota Stella (Alice Pagani) é como uma alienígena, tal como Verônica, a esposa do Cavaliere. Verônica é a sacrossanta, a mulher-mãe, a não prostituta, mais um traço dos estereótipos fálicos italianos que só poupam a mãe, a esposa-fiel -apesar-de-tudo e a avô, reduzindo quase todas as outras mulheres às variações de Madalenas. Stella, por sua vez, é uma Veronica em potencia. Ela diz a Berlusconi que sua corte lhe incomoda, ao que este pergunta o porquê. A jovem, com sinceridade suicida, afirma que ele tem o mesmo cheiro e hálito de seu avô e que aquela situação toda é patética. Cena-consciência do filme, a menina afirma, enquanto se retira da cama sem fazer sexo com o Cavaliere, que na Itália ninguém sonha mais. Em uma cena enigmática de Loro 1essa mesma menina havia encontrado “Deus”, um homem enigmático que ninguém vê. O personagem possuía uma toalha sobre o rosto e outra sobre a cintura. Ela deveria escolher uma das duas para retirar, ao que Stella escolhe, após hesitar, a toalha de baixo. Berlusconi pergunta a ragazza qual toalha ela escolhera e ela responde que a mais limpa. A solução poética é perfeita para a obra e ambígua como os dois filmes: nega-se a face (a identidade) em prol da única parte sincera em sua simplicidade vulgar.

A segunda cena ocorre perto do final de Loro 2, na qual Verônica e Berlusconi têm o momento casal quando ela pede o divórcio. Eles trocam injúrias horrendas e vivem o que Verônica diz ser o momento mais infeliz da vida de um homem e uma mulher, o fim da relação. A cena é banal, como o são tantas trocas violentas de casais, mas evidencia a dificuldade de administrar a vida pública, quando mais uma das escandalosas festas do protagonista são tornadas públicas para desgraça de Verônica. Grande cena de Ricci, decepciona, porém, porque deixa claro que o filme não propõe um antagonismo que se contrapusesse ao tamanho de Berlusconi. A única fragilidade do personagem ocorre quando este afirma que sabe o quão patético é, e admite a um amigo que afinal encontrou algo irrecuperável na vida – o amor de Verônica.

Loro 2

Por fim, pode-se dizer que os Loro são filmes ensimesmados estilisticamente. Sorretino parece incapaz de superar a obsessão estilística impostas por suas regras, observáveis no tratamento dos vários detalhes, nos animais-símbolos, na decoração com refinamento obsessivo, no uso da música. Mas é nessa autoadoração que o filme consegue montar uma imagem síntese da Itália. O terremoto surge quando Berlusconi retorna ao poder. A bela Catedral de Aquila se espatifa no chão pouco depois em que o político encena seu retorno popular. Pouco depois, no fim do filme, uma estátua de um Cristo deposto é resgatada por um guindaste dos restos da Catedral e é repousada sobre num pano vermelho-vinho. Os bombeiros e populares repousam soturnos nos escombros da cidade em silêncio, tendo um monte de escombros ao fundo no qual resta a estatua. Vemos a alteridade dos “loro” que está subentendida nos filmes: as pessoas que não importam senão quando servem aos interesses do poder. São seres humanos reduzidos a escombros, os italianos, como aponta o patrimônio destruído do qual restam estátuas-símbolos de uma ancestralidade insuficiente.

No fundo é a mesma Itália decadente que Sorretino já mostrava em quase todos os seus filmes. O poder, em especial o político, é o sol vital que o diretor parece negar em seus recentes discursos sobre os filmes, mas é o que de fato retêm a gravidade dos Loro. O clube “deles” é fechado aos que já estão lá. A história de Berlusconi é irrepetível na Itália em falência, mas que mostra melancólica e vital em sua agonia. Os últimos grandes homens queimando em queda…


Callas/Pasolini e Medea

Retorno aos filmes italianos por causa de uma pesquisa que realizo. E o retorno levou-me a Medea, o filme de 1969 de Pasolini e de Maria Callas, algo como uma cortina porosa entre mundos. Algumas das imagens maravilhas/perversas da história da arte provêm do profundo medo do feminino, de que este seja mais do que algo relativo apenas à mulher (e na maioria das culturas sempre o fora). Desde os rostos da Medusa (o espelho da morte), ao dilaceramento de Orfeu pelas bacantes ou à exibição da vulva, a mulher tem sido mostrada (também) como uma força primitiva, a qual, quando fora de controle, devasta o mundo – ou seja, os homens. A história de Medeia, desde Eurípides criou uma das imagens do terror feminino, a bruxa-mãe que por ser rejeitada, traída por Jasão, decide feri-lo destruindo-lhe a posteridade com infanticídio, o pior dos crimes femininos. Interessante pensar sobre o mito e a mulher nesta obra que poderia pertencer a Pasolini e a própria Callas.

Ora, não deixa de ser estranho que um cineasta que compreendia tão pouco do feminino tivesse sido capaz de promover algumas das mais magníficas obras no que se refere justamente às mulheres. Pasolini nada entendia do feminino, ele ideializava a mulher (seja maternal, compassiva e um pouco prostituta). Seu apreço pelo universo masculino se revela em muitas de suas escolhas, desde seus heróis marginais aos divertidos personagens da Trilogia da Vida. Não por acaso, em Saló, aquela devastadora destruição de si próprio, Pasolini segue o ponto de vista dos perpetradores masculinos a partir de Sade. Da “sodomia” ao marginalismo operário, o cineasta via e se interessava por homens. Isso torna Medea mais precioso e estranho. Não custa lembrar, por exemplo, que o cineasta almejava gravar uma Oréstia, nunca realizada, na qual ele queria que as Eríneas fossem domadas como Eumênides. É particularmente sintomático que escolhesse a peça grega na qual um homem triunfa sobre a velha ordem matriarcal, quando os deuses o pouparam da punição pelo crime do matricídio.

Ora, segundo o próprio Pasolini, Medeia representaria o subproletariado e sua religiosidade arcaica e pré-histórica, o ímpeto sacrifical do povo que se perdia em plena revolução antropológica que a Itália passava nos anos 1960, quando os mass media estavam destruindo as tradições e espontaneidades do povo italiano. Jasão, por sua vez, seria o burguês, o homem histórico e racionalizador. Se seguir a interpretação de Pasolini não define a abertura de sua obra, evidentemente, que transcende às justificações elaboradas, serve para entender a diferença (e a semelhança) de Medea em sua obra. Mas se assumirmos a bruxa como a subversão da ordem e Jasão como a ordem, compreende-se como e mulher emergia transformada numa idealização de um mundo ancestral. Injustiçada, Medeia irá matar os filhos e acabar com a posteridade de Jasão, fará sua justiça. Numa ordem ancestral, todo sofrimento humano clama por vingança e a justiça dos antigos deuses é uma retribuição agressiva e primitiva.

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A mulher ligada ao primitivo e ao arcaico é uma imagem/metáfora. Tem algo de antigo, pois o homem representaria a cultura (pode-se chamar de civilidade ou racionalidade), a qual, é problemática em Medea por ser burguesa. A poesia de Medea nasce montada sobre um estereótipo de gênero (a mulher e sua ligação com a “mentalidade primitiva”) e sobre um abraço folclorizante que idealiza o mundo perdido das tradições antigas. Sendo subalterna, a justiça feminina não poderia ser mais terrível. Entende-se como a mulher é enredada numa ordem maior do que a dela própria e reage contra a injustiça pela natureza. Ao contrário da mãe que grita desesperada a perda do filho no final de Mamma Roma (1962) contra a cultura que engole os filhos da cidade, no final de Medea (1969) os gritos de ódio da mãe-bruxa exprimem a revanche pela perda de sua dignidade.

No entanto, pensar apenas sobre o final da fita é desviar da obra. Se por um lado Pasolini compreendia o término de um filme como uma morte simbólica, a qual obrigava o espectador a realizar uma (re)montagem das imagens na memória; por outro, a queda de Medeia de amor por Jasão e seu despertar do transe do amor para o ódio o que o filme tem de mais precioso. A Cólquida bárbara é magnificamente enquadrada como um mundo ancestral na qual a bruxa era princesa e realeza. Mas Medeia substituiu o culto aos deuses pelo de Jasão e a admiração da personagem se mostra na maneira como a câmera filma o corpo do ator Giuseppe Gentile (demonstrando o apreço de Pasolini pelo rapaz), de maneira que o amor é como um torpor que torna a personagem incapaz de ouvir os velhos deuses ou a voz da natureza.

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Somente quando Medeia reconhece a traição do marido, que se embebe pela vingança por Jasão a trocar por uma mulher mais jovem, neste momento, algo extraordinário e antigo emerge. É quando a bruxa reconhece que é “uma ânfora plena de um saber alheio”, e, num átimo de desespero, volta a ouvir a voz de Hélios, o deus-sol. Foi uma das criadas de Medeia que lhe diz que ela deve recordar a todos que ela fora senhora de inúmeros prodígios. Inicia-se assim sua retomada da natureza, que ela já demonstrara antes, mas essa retomada é contra os seus filhos e amado. Em especial, ela me lembra a extraordinária fala de Lady Macbeth na peça de Shakespeare:

A história da literatura e a crítica literária derramou muita tinta para refletir sobre a estarrecedora beleza deste trecho, quando Lady Macbeth abandona-se de si mesma como mulher para tornar-se ruína e fatalidade em prol da ganância. Penso que Shakespeare ajuda a compreender o que Medea, o filme, seria quase cinco séculos depois, uma vez que diferente da personagem do dramaturgo inglês, a trama de Pasolini liga a personagem clássica a uma vingança ancestral na qual a mulher deixa de ser mulher para ser força da natureza primitiva. Idealizada, como a maioria dos personagens femininas de Pasolini, Medeia não é uma mulher, mas outra coisa, que se encontra no mito de origem, fonte de poder e força, uma ligadura com uma ética, uma postura e uma potência.

As imagens dessa potência chegam no reencontro do sol e da bruxa, construído sobre o poderoso olhar de Maria Callas, cujos olhos penetrantes nos convencem, na montagem, que ela de fato fala com o próprio Hélios. No final, enquanto Jasão a interpela desesperado, a voz imperial de Callas soa como o trovão nas chamas que a cercam, mas que não vemos. Talvez seja Callas afinal a que faz da Medea de Pasolini algo maior do que ele próprio previu. Sua atuação, em alguns momentos canastrona, em outras perfeita, atinge incrível credibilidade pela empatia da cantora. Medea/Callas, os cenário e as locações deslumbrantes enquadradas por Pasolini e sua equipe, constroem uma ode ao mito da ira.

Hoje o espectral rosto de Callas lança-se do passado em nossa direção e daquele presente de 1969, quando fora realizado, no rumo do passado mítico no rumo da intensidade de algum estupor. Algo operística, a fita é construída pela atriz, que explorou as bordas do enredo para tornar (ir)real a poesia de Pasolini, o qual, por sua vez, teve toda sensibilidade para permear a fita toda com essa troca.

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Seria Medea uma espécie de “máquina mitológica”, uma criadora de mitos, resultado do trabalho de Pasolini, ele próprio um fazedor de mitos que tenta compreender cujo poder é revigorado neste texto, ele próprio um refigurador de mitos? Em alguma medida, pelos olhos de Callas, a fita lança seu olhar mortífero de volta para nós, mostrando a convivência do sagrado e do profano no presente, criando plástica, sensação e emoção numa poderosa expressão emocional: o rosto desfigurado de Callas, a própria ira no último frame do filme.

Ressinto-me da montagem de Medea não demorar-se em suas melhores cenas. O filme, no geral, corta muito rápido de um plano para o outro. Pasolini era econômico, não gostava de se demorar na imagem, exceto quando desejava agredir. Fazia parte de uma vanguarda cinematográfica hoje superada, o cinema ali contido, intelectual e intelectivo, agressivo e pensante, hoje nos soa estranho.

Vi Medea várias vezes e na primeira vez não gostei nada do filme. Suas reflexões intelectuais afastaram-me antes, uma vez que pareceu-me que a fita pensava mais o mito e o sagrado do que o mostrava ou fazia senti-los. Depois de alguns anos, o revi e o achei magnífico. De repente, consegui entrar no mito/filme e as reflexões sobre o sagrado enquadraram-se naquele estranhíssimo cinema que reencontrava em Pasolini. Hoje, sabendo um pouco mais da mesma história da arte que alimentou Pasolini, percebo o cinema plástico cuja intensidade e delicadeza remete aos lindos afrescos de Masaccio ou do Beato Angelico.

Medea parece um tempo reconquistado à tragédia grega, à Itália perdida por Pasolini, à era de Maria Callas e a nós mesmos, solapando (minhas) certezas sobre o que seriam as imagens quando estas tornam-se um risco do entendimento e da sensação.