“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

Arquivo para março 20, 2017

As fobias e clichês em Logan

Acho que os filmes melhores de se comentar são os repletos de contradições.  Dito o que achei de instigante em Logan no post anterior, retornemos à inesgotável fonte de contradição política que é o filme de super-herói americano, preso como sempre aos problemas de hierarquia da sociedade onde nasce. Diria inclusive que Logan move-se no mesmo lugar comum do problema da “linha de cor”. Anos atrás já havia deixado claro que o racismo e a raça são os temas centrais nas tramas dos x-men, cujo imaginário está acorrentado a um beco sem saída ético-moral racial. A raça, mobilizável como poucas categorias de divisão humana, torna-se estratégica na organização do mapa americano das populações internas e externas às fronteiras da América e numa época de ameaças de muros a serem erguidos para separar norte e sul raça e EUA são um só.

Como já disse a transformação de Wolverine em Hugh Jackman foi um deslocamento fundamental na personagem quando transposto do gibi para o cinema. Naquele Wolverine era um estrangeiro quase-animal e sem sorte no amor e no sexo – com os anos isso foi modificado no gibi. Na tela grande ele ficou sem sorte no amor, mas um sucesso com as mulheres. Branqueado e americanizado na pele do australiano Jackman, o mito étnico americano adquiriu mais um herói modelo na tela grande. Mas as fábulas mutantes têm um problema congênito: o dom ou o superpoder é uma divisão racial das pessoas entre raças humana e mutante. Se no nosso mundo a raça é uma estória/imagem que usa marcas corporais de diferença, o poder mutante, nas tramas dos X-men, ocupa esta mesma função e por vezes pode também estar relacionado a uma diferença corporal, como a pele de Mística, os pêlos do Fera, etc.. De resto dos personagens centrais das tramas dos sucessivos filmes dos X-men, é sintomático que haja uma negra de destaque (Tempestade) e dois corpos mutantes realmente diferentes (Mística e Fera). O núcleo central é sempre branco (Wolverine, Xavier, Magneto, Jean Grey) ou usa máscaras brancas na pele mutante (Mística e Fera), ou seja, eles podem desaparecer na invisibilidade da pele branca.

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A trama de Logan conta um mundo pós-genocídio da cura mutante. Foi como uma medida eugenista: limpou-se o código genético antes das pessoas nascerem e exterminou-se os mutantes vivos. Com Logan velho, Xavier esclerosado e Caliban debilitado não nascem novos mutantes. Mas se o salto evolutivo fora interrompido, os novos mutantes que surgem são gerados artificialmente em mães mexicanas por inseminação artificial. Numa espécie de lixeiro americano, no México são realizadas experiências com crianças e mulheres, as quais são mortas para que os mutantes renasçam como máquinas de guerra. Laura, a filha de Logan, foi criada por meio do código genético do pai e uma mãe mexicana incógnita. Ela própria é mexicana, fala espanhol e inglês com sotaque, mas contraditoriamente herdará a identidade do pai. O México é uma fonte de perturbação de toda a diferença, uma outra nação repleta de não cidadãos ou subcidadãos, com clara diferença racial e étnica na cor de pele e na fala (o uso do espanhol e o sotaque). No México se sobrepõem os abusos das instituições americanas, acrescentando a todas as diferenças anteriores a mutanidade.

Na trama de Logan, mutantes, mexicanos e negros são raças: a família que o protagonista ajuda é negra e é assediada por funcionários brancos das corporações impessoais. Esquemático, o filme divide a humanidade entre os caridosos e seus algozes. Os primeiros serão mortos pela perseguição dos sacanas interessados em dinheiro enquanto Logan fica no meio do caminho até aceitar sua última missão de ajudar os remanescentes de seu povo. As vítimas distribuem-se, principalmente, mas não somente, nos grupos subalternos (mutantes, negros e mexicanos) enquanto os algozes são majoritariamente brancos e seus eventuais asseclas de minorias.

A linha de cor é, portanto, o núcleo por onde a segregação é conduzida e negociada na trama. E o filme cai vítima de seus clichês neste sentido: a primeira cena dos ladrões mexicanos que Logan mata incomoda por reproduzir um estereótipo. Da mesma forma, a mãe postiça de Laura, Gabriela, move-se numa passionalidade típica da maneira como o cinema americano costuma mostrar os latinos e hispânicos. No sul, do México não vemos nenhuma imagem de “civilização”, ao contrário da América avançada dona da tecnologia que persegue Laura e os mutantes remanescentes. O México “cloaca” do império é a terra selvagem onde a barbárie americana pode ser praticada sem responder por nada. Paralelamente, no norte está a esperança verdejante, para onde fogem Laura e seus amigos, atravessando o interior profundo de uma América natural e ancestral no qual o recomeçar é possível. Clichês antigos do faroeste de volta a um filme a meio caminho entre ficção científica e filme de gibi.

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Mas se o faroeste retorna, o faz de maneira contraditória – não por acaso o filme de referência é Shane, de Stevens, de 1953, obra do período de afastamento do mito da América como terra da livre empresa e da oportunidade americana do western original. A América mostrada é civilizada com todos os sinais de abusos e desumanização: experiências genéticas, corporações econômicas, armamento pesado e, finalmente, a clonagem. Numa dada cena o pai da família negra mostra as plantações de milho clonados e as acusa de envenenamento. O próprio X-24, o novo Wolverine, é um clone bem sucedido de Logan, máquina substituta desumanizada que revela o medo das produções da indústria genética e a permanência da clonofobia, matriz de imagens substitutas que alimenta franquias inteiras do cinema americano (Star Wars – a guerra dos clones; as variações de Jurassic Park para citar apenas alguns). Neurótica e fóbica, a cultura americana aparece em Logan com os medos das imagens, da diferença racial, da alteridade nacional e da intervenção das grandes corporações nos alimentos e no controle da população.

Numa primeira aproximação, se poderia pensar que Logan propõe esses pontos como questões, mas não penso assim. A fita é exatamente o que são todos os produtos X-men, prisioneira dos clichês e medos que dividem as pessoas pela linha da cor, pela raça e pela etnia e pela dificuldade de incorporar como legítimos os membros de sua comunidade que não estão no mito fundador da América branca e puritana migrada da Inglaterra. O muro desejado por Trump é uma proposta de materialização de uma divisão que já é real na imaginação como encarna inescapavelmente o filme Logan. Este testemunha a fobia americana e frente à morte do herói  há quem escute ao Trump.