“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

Arquivo para outubro, 2010

Mil arthurs…

Os romances históricos são empolgantes pela forma de criar curiosidade sobre o que de fato pode ter acontecido numa determinada época. Caso o livro se debruce sobre algum tema cuja base do que se sabe dele seja alguma narrativa mágica, tal como a lenda do rei Arthur, e se o texto não tem pretensões históricas, ficamos satisfeito com a ficção que não se quer nada mais do que um novo relato da lenda. A magia, e sua capacidade tão próxima da ficção de nos livrar das amarras da visão naturalista ou (mais recentemente) digital do mundo, sempre parece no lugar certo em lendas, mitos e velhas estórias dotadas de valores perdidos e alguns que ainda compartilhamos.
Acabei de ler O Inimigo de Deus, segundo volume das Crônicas do Rei Arthur, de autoria de Bernard Cronwell, um romance histórico diferente as narrativas mágicas ao tentar criar uma versão baseada nos levantamentos de pesquisas históricas e literárias sobre Camelot, Excalibur, Merlin, Lancelot, Merlin, Guinevere, Morgana, Arthur, e outros. Isso significa que estamos longe da tentativa de criar uma magia realista como ocorre no filme Excalibur, de John Borman, de 1981, um dos filmes da minha infância, no qual Arthur, Lancelot, Merlin, Morgana e Guinevere são belos e extraordinários e no qual a busca do Graal rendeu ao cinema um dos seus mais belos momentos míticos quando Persival, o mais puro dos cavaleiros o encontra, e ele, nu, dá de beber do cálice sagrado ao seu rei e o restaura.

Estamos longe do anime japonês quie criou uma das Morganas mais assustadoras que já vi. Nunca esqueci quando os cavaleiros mostram o olho de dragão roubado aos monstros da bruxa, cuja luz os destrói. Estamos longe também dos quadrinhos da DC, no qual Merlin é filho do demônio e oferece sua ajuda a Arthur, ou daquele releitura oitentista, a Camelot 3000, bem ao gosto do decadentismo da década de Margareth Tatcher, no qual Tristan reencarna como mulher e é obrigado a virar lésbica (o), que Merlin é capturado, Arthur, novamente, corneada, Morgana está com câncer e a Inglaterra está arrasada.
Em todas elas haviam constantes: a traição de Arthur por seu melhor amigo e sua amada esposa; a busca do Graal; Merlin sempre extraordinário e terrível; a espada mágica, um falo superpoderoso do rei; e Morgana, a inimiga.
Em termos de romance, a estória de Marin Zimmer Bradley ainda permanece mais original, embora talvez, menos excitante, em comparação com os livros de Cronwell. As Brumas de Avalon é uma visão feminina da lenda, que concatena o romance antigo em todos os elementos só que agora ressignifica-a segundo os mitos celtas da Grande Deusa, que fez de Morgana a protagonista, uma vilã que foi a maior aliada, amor e inimiga de Arthur. Sua maior originalidade está no ponto de vista feminino, o qual, curiosamente, só é possível, quando se torna o cristianismo como adversário, tirando da lenda mais comum sua caracterização extremamente cristã. E este é o outro ponto de ousadia maior. As Brumas, não tinha interesse histórico. Pelo contrário, mais parece obra de uma escritora que re-leu, pelo olhar feminino O Senhor dos Anéis, e absorveu a compreensão de magia que ali havia, tornou todos os homens ali como personagens secundários, e fez de Igraine, Viviane, Morgana, Morgause e Guinevere as protagonistas. A magia é como o poder do corpo que se faz em silêncio, já nos mostrava Tolkien, de vez em quando com um pouco de luz, névoa, visões, empurrões ou vontade. Magia é sobreposição de vontade, Bradley também aprendeu com Tolkien. Ainda não esqueci imagens poderosas: Viviane sendo morta na frente de Arthur ou Mordrer e Arthur lutando enquanto suas espadas atravessam o espectro de Morgana.
Como tinha muito de masculino nas lendas de Arthur, havia menos de masculino nas Brumas, e por isso o livro parece aquém do que deveria ser.
Curiosamente, nas tramas de perspectivas masculinas, o centro da trama geralmente são Merlin, Arthur e seu infinito amor por Guinevere. E claro a traição desta com Lancelot que deflagra a decadência que torna obrigatória a busca do Graal. Cronwell não muda isso, mas seguinda a esteira de Bradley olha a lenda pela chegada do cristianismo, torna-o um dos vilões da estória, evidencia o fanatismo religioso como um problema, e coloca a velha religião celta na defensiva contra o Carpinteiro pregado na cruz.
Só que As Crônicas do Rei Arthur nos perturba por colocar em evidência seu esforço a um só tempo historiográfico e anacrônico: tentando colocar o que se sabe sobre que realidade poderia ter existido, ele se aproxima do mundo medieval, e, em posfácios e notas, nos alerta para que personagens poderiam ter existido, ao mesmo tempo que aponta seus anacronismos, seus acréscimos. De maneira que sabemos que se tivessemos a História original, não teríamos a história em romance. Vemos um livro que ao dizer que não é histórico, nos faz pensar na História.

E aí sabemos que personagens desaparecera (como Derfel, o narrador de Cronwell), que Arthur provavelmente foi pagão e era odiado pelos cristãos, que provavelmente a busca do Graal nasceu da busca de um Caldeirão mágico (tema caro aos mitos celtas), que Nimue era a versão original de Viviane, que Lancelot, Tristan e Isolda não devem ter sido contemporâneos de Arthur, que Excalidur não era Excalidur, que Merlin provavelmente era um druida sacrificador de seres humanos e que os pagãos eram tão sujos, imundos quanto os cristãos.
Cronwell destruiu a leveza do mito, que Bradley deixara intacta, pois suas mulheres tinham de ser tão extraordinárias quanto seus homens. Agora, na dureza do fedor, apenas Arthur permanece inteiro como um rei que nunca foi rei, líder extraordinário, mas, ainda, perdidamente apaixonado por Guinevere que se entrega a Lancelot, agora inimigo de Arthur que se deixou fingir de amigo. Explicando-nos tudo, Cromwell cria uma trama excitante (que inclusive não me deixou estudar), e apresenta-nos uma visão que, como sempre, mais nos revela sobre nossa época do que sobre o passado. Ou sobre a lenda!
A religião vira uma fonte de problemas, o fanatismo é tratado como uma imbecilidade flagrante, Arthur vira quase um precursor democrata, e a magia é quase esvaziada, exceto pelas manifestações de êxtase (o êxtase é sempre uma coisa perturbadora para qualquer escritor que se preze e não se deixe enganar pelo discurso psiquiátrico).
O melhor d’O Inimigo de Deus são três ocasiões: a busca da Estrada Escura, na qual o Caldeirão é encontrado, a surra de Mordrer por Derfel logo após Lancelot o trair e a conversa de Nimue com Derfel sobre a traição de Guinevere. Esta última é uma leitura atenta das personalidades. Novamente o nosso tempo: traidora, mas não prostituta. Coisa aprendida com Bradley: quando uma mulher deseja como homem, faz como um, e continua sendo mulher, ela vira prostituta (ou bruxa). E o autor nos explica o que aconteceu com as vilãs femininas da lenda medieval e de como nosso mundo reescreveu a história.
Entretanto, As Crônicas do Rei Arthur, há algo que é inovador em relação a todos os outros: a desmistificação de quase tudo que era sagrado, inclusive da realeza de Arthur, a revelação de um mundo cru que pode ter sido a época vivida. Mas romances históricos, revelam mais de nosso tempo do que do passado: a crueza do mundo e a débil magia ali presentes revelam o quanto nossa imaginação gosta de aterrissar nossas lendas, o quanto queremos também saber o que pode ter sido, porque a lenda em si já não nos parece mais trágica o suficiente. Temos de tragificar nossas crenças porque é uma das formas pelas quais lidamos com o mundo.
E mesmo assim, algumas narrativas permanecem: o fascínio de Arthur é pelo imaginário que o fez mágico e de continuar nos encantando, por mais histórico que seja. Mais histórico, mais imperfeito! Mais gente?! Ele sempre o foi, mudou a forma como queremos que nossos personagens correspondam às nossas imperfeições.


Tropa de Elite 2

Hoje, depois de muitos meses, fui ao cinema novamente, desta feita para ver Tropa de Elite 2. Havia gostado do primeiro filme, apesar do fascismo e do exemplo da moralidade simplista da classe média. Isso os dois filmes tem de comum com muitas outras manifestações que tem se tornado constante no Brasil contemporâneo, e que também aparece em muitos outros tempos e lugares: o recurso à moral para (in) pensar um problema social.
O filme de Padilha é,no mínimo, um fenômeno imaginário importante. Cinematograficamente marca a competência de seu diretor e equipe. Como fita, Tropa de Elite 2 é tão bom quanto o primeiro, e, apesar de mais lento, igualmente interessante, chegando a brincar com a atenção e expectativa do espectador, por meio de um roteiro intrincado que torna seu estrondoso sucesso de bilheteria mais surpreendente.
Ou não?
Como havia dito acima, a moralidade das questões sociais é uma forma de resolver as tensões e articular uma solução aos problemas, ainda que sua única saída só possa ser a catarse. Os dilemas sobre o aborto na atual campanha presidencial demonstraram antecipadamente do que falo. Como lembrou acertadamente o editorial da Isto É do dia 17 de outubro, Dilma e Serra perderam o tom correto, pois ao invés de expor suas propostas de governo, se desviaram rumo ao debate moral que teve no aborto seu pano de fundo. A mesquinha revista Veja, cada vez mais infantil na sua política de desfalque anti-Dilma/Lula/PT assinalou um dos lados dessa mesma moralização do debate (ou não-debate, no caso da revista). Quando as coisas parecem que vão feder, identificar corruptos, imorais, vagabundos, impunes, ladrões, traficantes, terroristas, etc. é uma boa medida para conseguir determinar quem está do lado do bem e do lado do mal – essa é a fuga padão do moralista.
O discurso moralista (que é diferente de um discurso moral) é uma ferramenta eficiente porque evita complexificar o problema e estabelecer gradações nas preocupações, ao articular um problema na forma de variáveis no eixo do certo-errado. Quando isso acontece, entre mocinhos e bandidos, podemos, afinal, saber para quem torcer. Ocorre na campanha elitoral, ocorre em Tropa de Elite 2.
Mas agora, na película, “o inimigo é outro”, o sistema, como nos coloca o coronel Nascimento. Trata-se da formação circuito traficante-policial corrupto-político. O sistema do filme, ao menos aquele que é criado para nós, é de uma força assustadora, uma amplidão que alcança Brasília, como demonstra o último plano do filme. Contudo, tudo é visto pelo prisma moralista. Nascimento desmonta sem muitas explicações o tráfico, o que faz com que os policiais corruptos terminem o serviço e roubem dos traficantes sua ocupação como “defensores” dos morros cariocas. O sistema (de corrupção) atinge os círculos políticos cariocas mais elevados, atraindo, de cada campo social, os vermes que comem a maçã brasileira. O filme contrapõe dois personagens diferentes em tudo, Nascimento e Fraga, os inocenta de qualquer reponsabilidade moral efetiva, e, ao demonstrar as angústias deles frente suas funções, cria a contraposição que demarca com clareza os criminosos.
Afinal Tropa de Elite 2 é um filme de policiais contra um tipo de crimonoso mais arraigado no sistema burocrático brasileiro. A moralização da história se faz até seu final, quando o narrador Nascimento, nosso porta-voz das concepções sociais da fita, conduz-nos até a amarga conclusão que nossos representantes eleitos são o ápice dessa pirâmide de corrupção. Não por acaso, a fita não poderia ter sido lançado num momento político mais oportuno.
O que havia de admirável na primeira fita de Padilha é a possibilidade de uma catarse social das classes menos abastadas, as quais, finalmente, viram jogada na cara da classe média sua conivência com o tráfico, com a corrupção da PM e com uma solução efetiva (paliativa) na porrada dessa chaga social que é o tráfico nas favelas. A fita dois é um pouco diferente: amplia o escopo, foca no sistema e na politicagem e mostra a corrupção ampla da nação espelhada em uma de suas cidades símbolos, o Rio de Janeiro. O mal, diz-nos, está aqui e termina na outra cidade símbolo, a capital federal.
O admirável desta “O inimigo agora é outro” é conseguir concatenar a indignação da nação, seu sentimento de absurdo frente as impunidades. Mas… ao fazê-lo, também com a maestria perfeita, demonstra a própria forma pueril como insistimos, no Brasil, em ver o problema, numa escala entre corruptos x não corruptos, o jogo de branco ou preto do qual temos nojo. Neste quadro, a “culpa” é sempre do outro.
O sistema de Tropa de Elite 2 é tão somente aquele visto pelo prisma moral no qual as classes sociais se apontam como vítimas uma das outras. A denúncia da película é essa: apontar o inimigo e pesá-lo moralmente, isentando a classe média das próprias responsabilidades cotidianas. Sempre me pareceu que toda sociedade é um conjunto de sistemas interligados e as vezes conflitantes, por isso abertos, mas aparentemente a nossa possui graus de tolerabilidade com determinadas corrupções que são praticadas pelas pessoas cotidianamente de maneira que os que estão no poder não são meros corruptos que traíram o povo, mas seu próprio reflexo. Não seriam gente, feitos da mesma matéria-prima social que o resto de todos nós?
Refletir desta forma, na posição do roteiro de Padilha, é chegar na conclusão de que os brasileiros prestam tão pouco quanto seus políticos, ou aceitar, com algum incômodo, que provavelmente, o problema do tráfico envolva um sistema mais intrincado do qual o seu uso político é apenas uma de suas muitas manifestações.
Não que o filme tivesse que observar essas coisas todas. Pelo contrário, é um filme! Mas ao aventurar-se a criar um quadro, a fita também me convoca a pensar este quadro (o que demonstra seu sucesso enquanto obra) pelo qual possa ver o quanto é limitado.
O que mais me chama atençãó é que a indignação captada por Tropa de Elite 2 é inócua em trazer uma visão alternativa ao que já se discute no dia-a-dia. Após essa experiência cinematográfica excitante e divertida, temos confirmados os nosso rumores e conversas cotidianas sobre a impunidade, corrupção e horror do país do carnaval, e o que mais se confirma é a tendência de tudo resolver na contraposição que evita questionar o papel de nossa cultura, hábitos e fazeres. Não há novidade.
Nem fascista este Tropa de Elite 2 consegue ser, apenas previsível na moral de classe média ofendida. Vale muito vê-lo, mas se reconfirma tudo sobre um país que consegue visualizar, graças aos deuses e homens, suas próprias mazelas, e continua pensando nelas de maneira a esconder de si a própria responsabilidade.
Minha questão maior não é se a recusa da fita é intencional, mas se ela não demonstraria a dificuldade de nosso imaginário (e dos campos culturais brasileiros) de articularem uma visão efetiva do problema?! Não seria essa imaginação de cinema um sinal da inimaginação da mazela?