“é como se conhecêssemos bem o tempo?”

X-Men e o racialismo norte-americano

Recentemente li algumas histórias dos X-Men, argumentadas pelo inglês Grant Morrison. Nelas vi como a composição étnica da sociedade norte-americana, de certa forma, normatiza e uniformiza a forma como os mundos imaginários são criados nos comics de super-heróis norte-americanos. O que escreverei aqui não é fruto de quem leu todas as histórias dos X-Men, mas sabe e leu algumas estratégicas que parecem servir de modelo para as posteriores e atuais.

Os X-Men foram criados por Stan Lee nos anos 1960 numa revista que contava a saga dos chamados mutantes, pessoas com alterações genéticas que a partir da adolescência desenvolviam poderes sobre-humanos, as ‘mutações’. Os primeiros X-Men foram treinados pelo telepata Charles Xavier, defensor da convivência pacífica, e foram Jean Grey, Ciclope, Anjo, Fera e Homem de Gelo. Sua primeira aventura foi contra outro mutante, o sobrevivente do nazismo Magneto, então um radical mutante voltado contra os humanos. Magneto acreditava na necessidade de dominar os humanos para a sobrevivência de sua raça. Xavier e Magneto são dois lados de uma mesma moeda, defendendo diferentes posições sobre uma mesma verdade: existem duas raças no mundo, a “humana” e a “mutante”. No mundo ficcional criado por Stan Lee, essas raças foram imaginadas em desacordo e assim têm continuado ao longo de quarenta anos de muitos desenhistas e argumentistas.

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Na história recente que li, aparece uma nova organização, os O-Men que querem substituir os humanos e os x-men (portadores do gene “x” de mutação). Tratam-se de humanos interessados em incorporar os poderes (não as mutações) dos mutantes se tornando representantes de uma nova raça. Grant Morrison, o argumentista dessa fase dos X-Men, deslocou o mito do novo homem um ponto além dos mutantes e problematizou a questão que é a base do drama de Ciclope, Wolverine, Tempestade, etc: a questão racial. O novo homem, no faz-de-conta dos X-Men, é sempre membro de uma nova raça.

Eis o meu ponto: raça. De fato, a composição social e o imaginário norte-americano delimita brancos e negros, de forma que, nos EUA, há uma bipolarização entre as duas “raças”. Num movimento de defenição polar, gente de pele branca “são” e passam a se definir como brancos cristãos americanos e os negros como afro-americanos. Num país de imigrantes que dizimou seus índios, a idéia de raça parece ser estruturante de muitas das relações e diferenças sociais . A tensão racial nos EUA, por causa dessa divisão em caixas separadas e pelo baixa tolerância a miscigenação,  é elevadíssima.

Talvez não seja tão curioso que num país assim seja o palco de um dos maiores fenômenos editoriais dos quadrinhos mundiais, os X-Men, cujo principal drama se alicerça justamente sobre a tensão racial.  Uma das coisas que define a compreensão racialista do mundo, é que o “outro” é sempre de uma “raça” diferente. Dessa idéia ao racismo o passo é fácil, sendo que o racismo, além da teorização da superioridade racial, consiste em fazer do outro um instrumento de prazer ou de ódio, preferencialmente deste último.

As revistas dos X-Men entraram em crise de baixa vendagem no início dos anos 1970, mas foram renovadas com a incorporação de personagens novos: Tempestade, uma negra africana que foi tomada como deusa na terra natal; Wolverine, um canadense assassino desmemoriado e animalizado; Colossos, um russo com corpo metálico; Noturno, um “demônio” alemão capaz de teletransporte. Com esses personagens, o grupo se tornou o mais rentável comic da editora Marvel. Curiosamente, Chris Clamerot, o escritor das estórias dessa fase, fez um feito inaudito e até hoje inigualado em termos inventivos que qualquer outro argumenista da série: os mutantes que já eram o “outro”, o diferente e oposto da raça humana, agora incorporavam todos os “opostos” da raça (americana) – o africano negro (Tempestade), o inimigo russo (Colossos), e a animalidade (Wolverine, Noturno, está já anunciada por personagens como Fera). Ao fazer isso a capacidade de identifcação dos X-Men com seu público, que já era grande, aumentou e desde então os personagens têm incorporado toda a diferença, exceto uma, ainda muito sutil, a de orientação sexual. X-Men sempre foi e é profundamente “heterossexual”.

 

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O que Morrison fez de novo? Desde os roteiros de Clamerot, a tensão entre humanos e mutantes tem crescido, mas talvez Morrison a tenha tratado com uma crueza única. O ódio racial é o maior trunfo dessas novas (e velhas) estórias e mostra como os comics dos X-Men reflete a forma como as pessoas imaginam a nação “EUA”. Por mais que os argumentistas ampliem as tensões raciais de suas tramas ao nível global, colocando como mundo inteiro odeia mutantes, a compreensão de raça que permeia aquelas histórias é particularmente norte-americana, porque sempre é bipolar e marcada por grande ódio racial. Mais do que isso: a premissa do mundo ficcional dos X-Men, do faz-de-conta da série, garante seu conteúdo: raças existem e por isso a questão de convivência entre elas é preemente. Só que com os anos, os comics têm caminhado para a insolubilidade da questão.

O que me deixa mais impressionado é que nenhum argumentista jamais superou o imaginário instaurado por Stan Lee de que as raças são diferentes e por isso o conflito (bélico) entre elas é iminente. Na verdade todos os argumentistas posteriores continuam trabalhando nessa mesma linha e Morrison só tocou a bola adiante. Não há tentativa de imaginar mundo melhor, ou em que a negociação seja possível e isso numa época em que a ciência genética insiste em dizer que realmente não existem raças. O sucesso da argumentação dos X-Men talvez esteja ligado a permanência de um senso comum racial na sociedade dos EUA.

De certa forma as explicações do comportamento obtuso da imaginação dos argumentistas da série mutante têm duas ordens de respostas: 1) financeira, porque é mais fácil manter as coisas assim, uma vez que torna a identificação com os leitores mais imediata e eles compram mais. Aliás o mundo de desgraças de qualquer personagem tende a ser mais rentável do que se eles fossem felizes (vide casos de Spawn, X-Men, Batman, Homem-Aranha; contra Super-Homem e Capitão América). 2) Isso reflete cada vez mais o cinismo dos argumentistas na atualidade, que usam desculpas de que vão humanizar as personagens,mas atualmente entendem humanização como brutalização e mesquinhização das personagens. O que me impressiona é que pelos dois motivos, o imaginário é sempre negativo e sempre re-afirmativo do irreparável racismo que é a base de X-Men. E quando qualquer pessoa tenta ver um futuro para o mundo de faz-de-conta de Wolverine e companhia, ele é sempre sombrio.

Essa imaginação obtusa pode revelar, é a tese deste texto, um apego ao imaginário racial americano como um beco sem saída. Não há como pensar de uma forma diferente quando se pensa a partir dos EUA, e os X-Men são um pequeno simulacro dos EUA. Ele não apenas reflete, mas reifica uma provável irresolução do conflito racial que sustenta as relações sociais norte-americanas. Para além de refletí-las, X-Men as re-constrói ao imaginar todos os “outros” em função da idéia de raça (como o demonstram de novo os O-Men de Morrison). E nenhum argumentista que trabalhe nas publicações parece pensar de uma forma diferente, tentando superar uma retórica da convivência baseada nas raças. E graças a eles só variações de “Dias de um Futuro Esquecido” no futuro dos X-Men, porque nos EUA a retórica e a defesa da raça são dominantes.

Faço tais considerações sobre os comics dos X-Men, nada afirmando sobre os filmes, os quais têm uma proposta mais amena e possuem, por incrivel que pareça, um apelo de movimento social que os quadrinhos nunca desenvolveram.

3 Respostas

  1. Salve, Santiago !

    Muito bem dito sobre a questão racial nos EUA e o quadrinho em questão !
    Quanto a Grant Morrison, o diferencial em suas estórias está em como ele abordou o mundo mutante.
    Enquanto Claremont e outros mais separavam os mutantes, fazendo com que existissem os mutantes “bonitos representados pelos X-Men e seus rivais e os mutantes “feios” representados pelos Morlocks, Morrison abriu as portas da escola Xavier para outros homo sapiens de aparência bestial.
    É bem verdade que Noturno apresenta aparência demoníaca assim como o Fera mais parece um animal, mas vale lembrar que ambos sempre fizeram sucesso entre as mulheres homo sapiens de alguma forma. Não é o que ocorre com os mutantes de Morrisson.
    Aliado a isso, os desenhos de Frank Quitely tornaram os X-Men mais reais, menos modelos de propaganda de televisão. O que desagradou àqueles tão acostumados com o “belo”.
    O argumentista nos abriu as portas do Instituto para nos apresentar mutantes das mais variadas formas inseridos na trama. Tivemos pela primeira vez a real dimensão de como funcionava o Instituto, uma vez que as aparições desses eram cada vez mais frequentes; o problema racial do gibi ficou mais evidente com essa realidade nos batendo agora na cara, não estava mais distante como antes, escondido nos túneis subterrâneos. Não mais estava na casa do vizinho, estava ali, nos incomodando.
    Essa é uma das características mais notáveis no enredo criado pelo autor em questão. Com certeza, merece um encadernado ou dois daqui a alguns anos.

    Feliz dia !

    agosto 18, 2007 às 2:32 am

  2. ray

    bom eu queria ser uma mutante ia ser legal pra ele existem

    março 4, 2008 às 7:24 pm

  3. Pingback: As fobias e clichês em Logan | Passo por acontecer

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